20 - Em paz com meu país


24/05/2010

     É impressionante como o brasileiro desvaloriza o Brasil. Eu, que já fui aspirante a intelectual de esquerda (isso é parte do meu passado, graças a Deus), sempre critiquei essa auto desvalorização. Fácil constatar o quanto sou contraditório. Mas não tem problema, essas constatações negativas sobre mim mesmo até tempos atrás me deprimiam, hoje não me deprimem mais. Vejo que não sou muito diferente dos outros. Cada um com suas mazelas. Cada um que aprenda a lidar com elas. Poço de contradição. Eu mesmo. Sobre paradoxos e contradições, falou com maestria Humberto Gessinger (já que estamos chegando a Porto Alegre é bom ir falando um pouco dele) na canção “Canibal vegetariano devora planta carnívora”. Só o título em si já é paradoxal. A letra toda da canção é, como ele mesmo diz, “o supra sumo da contradição”. Desculpem minhas frases meio soltas, esse estilo diferente. A insônia produz essas pérolas. Veja você: uma e quarenta da manhã, quarta-feira, dia 12 de janeiro, mais uma vez estou aqui, no apê em Ribeirão, sem conseguir dormir. Pelo menos agora tenho um notebook pra me distrair, e resolvi me redimir com o Brasil dessa forma torta e surreal.

     O fato concreto é que quando saímos de Punta del Este rumo ao norte, em 24 de maio de 2010, algo estranho se deu dentro de mim. Dali a algumas horas estaríamos no Brasil e veio à tona uma saudade reprimida, um arrependimento e uma consciência tardios em relação às injúrias que andei fazendo ao meu país, declarando-me torcedor de uma seleção estrangeira, super admirador de outras culturas. Na mala eu carregava uma camisa da seleção do Paraguay, comprada durante a viagem; uma camisa da seleção da Argentina, trazida do Brasil; uma bandeira do Chile comprada em Viña del Mar; uma camisa celeste da seleção uruguaya, que eu compraria logo mais, em Chuy. A camisa da seleção brasileira, porém, eu não carregava. Justamente a camisa amarela (cor tão energizante, segundo a cromoterapia, e tão recomendada a sujeitos com tendência depressiva, como eu) não estava dentro da minha mala, pois eu não a possuía, nunca comprei uma e naquele momento, apesar de fazer toda uma reflexão de remorso, eu não pensava em comprá-la. Hoje penso muito em fazê-lo.

     De onde vem o desamor que sinto pela Seleção brasileira? Nem eu sei ao certo. Sei que futebol pra mim é guerra, então sempre preferi a cara feia de um Simeoni do que o riso de dentes tortos de um Ronaldinho Gaúcho (aliás, tomara que ele e o Flamengo, seu novo clube, se FODAM). Sempre preferi Maradona (e seus amigos e/ou ídolos esquerdistas, Che Guevara, Hugo Chavéz, Fidel Castro) a Pelé (e seu estilo "em cima do muro"); a tradicional raça e malícia argentina às firulas ingênuas dos brasileiros. O que fazer? Não é questão de escolha, mas sim de gosto e de identificação.
     A primeira Copa do Mundo que assisti e da qual me lembro com detalhes foi a de 1990, na Itália. Naquela ocasião, o Brasil foi eliminado nas oitavas de final pela Argentina. Maradona flutuou no meio campo, em meio a quatro brasileiros que o marcavam e passou a bola a Caniggia, que meteu pro gol. Logo após a partida, saí na rua para jogar bola com os moleques da vizinhança. Todos queriam ser o Careca, o Müller (apesar da derrota). Eu queria ser Maradona ou Caniggia. Não sei porque, mas desde que vi o álbum de figurinhas daquela Copa, as cores da Argentina me fascinaram. De 1990 pra cá, não consegui mais torcer por outra seleção. Maradona me conquistou, como a tantos outros. Infelizmente?! Inexplicável?! O que me alenta é que não sou só eu.

     O fato de não conseguir torcer pra seleção verde-amarela (e isso é mesmo um fato consumado, não há como mudar), não me faz menos brasileiro nem me obriga a desgostar do Brasil em outras áreas. Pois bem, nem sempre isto esteve claro pra mim mesmo, mas agora está, e quero que fique claro para os outros também: só torço contra o Brasil no futebol. No mais, sou brasileiro. Antes de brasileiro, porém, sul-americano, sentimento nascido da busca  por uma ideologia (Cazuza, eu também quero uma ideologia pra viver), mas que hoje não é mais questão disso. É questão de sentimento mesmo. Afinal, somos todos hermanos.

     A cidade de Chuy, no Uruguay, é separada apenas por uma avenida da cidade de Chui, no Brasil. Basta atravessá-la para passar pro outro país. Marcel parou o carro no estacionamento de um Free Shop, no lado uruguayo. Desci, parei em frente a avenida que separa os dois países, vi uma agência do Bradesco do lado de lá. O coração deu uma disparada, os olhos lacrimejaram de felicidade e arrependimento. Que vontade de te pedir perdão, pátria mãe gentil. Sou brasileiro, escreve aí! Sou brasileiro, sim senhor! Deixei o Marcel no Free Shop procurando um molinete de vara de pescar que seu pai lhe pedira para dar de presente a um colega, atravessei a avenida balbuciando uma oração. Cumprimentei o segurança do banco com um “bom dia” baixo, meio engasgado, entrei no banco, saquei uma centena de reais. Peguei o celular e falei com a minha mãe, há dias não nos comunicávamos. Entre outras coisas, eu disse “fica tranquila, fora a gripe equestre que bate à minha porta, estou bem”. Ela não entendeu, mas como está acostumada a não entender parte das bobagens que falo, nem perguntou mais nada.

     As mães sempre perdoam os filhos. A pátria mãe não seria diferente. Logo me senti perdoado e a vontade. E agora já posso descrever melhor o que se passou no trajeto de Punta del Este até Porto Alegre, o trecho mais longo da viagem.

     A chuva nos acompanhou durante quase toda a jornada. Quando chegamos a Chuy/Chuí caía um chuvisco chato, frio. Andamos pelos Free Shops da parte uruguaya para fazer as últimas compras no estrangeiro. Acho que a única coisa que comprei foi a camisa da seleção uruguaya, que ali estava bem mais barato. Almoçamos, ainda do lado de lá. Passava um programa esportivo na televisão cujas notícias de maior destaque eram a permanência do Gimnasia y Esgrima De La Plata na primeira divisão do futebol argentino e a queda do Rosário Central à segunda divisão (em seu lugar subira o All Boys, time preto e branco do bairro Floresta, Buenos Aires).
     Partimos pra Porto Alegre logo após o almoço. Mais de 500 km separavam a cidade mais meridional do Brasil da capital gaúcha. A aduana Brasil/Uruguay é uma piada. Nem ao menos nos fizeram parar para pedir documentos. A chuva insistia em cair impiedosamente, a estrada de pista simples estava perigosa, em alguns trechos haviam muitos caminhões. Paramos em Pelotas para abastecer o carro, já era noite. Pouco antes, na estrada, Marcel me deu um susto, fingindo que o carro estava falhando. Filho-da-puta.
     Quando chegamos em Porto Alegre já não chovia, mas estava muito frio. Configurei as definições do GPS de modo que ele nos levasse até o centro da cidade e logo achamos um hotel entre o mercado central e a rodoviária. Fechamos um quarto pra três, já que o Vlad (aquele cara de Porto Velho que conhecemos em Buenos Aires, que foi pro Uruguay de ônibus pra nos acompanhar na viagem...) logo viria de Montevideo para seguir na Trip junto conosco. Telefonamos para umas gaúchas que havíamos encontrado em Buenos Aires e acertado de nos vermos em Porto Alegre marcando o encontro pro outro dia, pois estávamos acabados. Jantamos numa churrascaria em frente ao hotel e na sequência dormimos o contraditório sono dos justos.


Canibal vegetariano devora planta carnívora
Humberto Gessinger / Augusto Licks

eu tive um pesadelo
tive medo de não acordar
do alto de uma torre
eu vi a terra
em transe profundo
todo mundo era poeta
todo mundo era atleta
todo mundo era tudo
"DO IT YOURSELF", diziam
"O CÉU É O LIMITE", acredite
é um pesadelo
não consigo acordar
eu tive um pesadelo
tive medo de não acordar
eram várias variáveis
um vírus voraz no computador
sem rumo:
na contramão do fim da história
em resumo:
o sonho é OVER (OVERNIGHT)
é um pesadelo
não consigo acordar
O SUPRA SUMO DA CONTRADIÇÃO
clichês inéditos
déja vu nunca visto
esquerda light
diet indigestão
jagunço hi-tech
perua low profile
cabelo vermelho Ferrari
jóia rara para a multidão
eu tive um pesadelo
tive medo de não acordar
tudo andava tão caído...
eu andava por aí
sem rumo:
sem rima nem refrão
em resumo:
não tive culpa nem perdão
eu tive um pesadelo
tive medo quando acordei
tudo faz sentido
agora que tudo acabou
o céu andava meio caído
antes mesmo de desabar
turistas vorazes
(voyeur)
levavam pra casa
desertos e oásis num vídeo k7
anjos em queda livre
o céu abaixo do nível do mar

foi só um pesadelo
um peso pesado caído na lona
! o castelo de areia desmorona !
(paz na terra em transe profundo)
foi só um pesadelo
paz
na terra
em transe
profundo
(CONTRA A TRADIÇÃO: A CONTRADIÇÃO)
overdose homeopática
ode ao que se fode
humildade
(com "H" maiúsculo e dourado)
enfant terrible veterano
calendário eterno
fuso anti-horário
luz difusa
confusa explicação
tara relax
safe sex
disneylândia dândi
(a grande guerra)
pantanal new age
bacanal cristão
fanatismo indeciso
fanática indecisão

em resumo:
ET CETERA e tal...


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